segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Constitucionalidade da Lei Maria da Penha

ALICE BIANCHINI
Fonte: http://www.blogdolfg.com.br/colunistas-convidados/constitucionalidade-da-lei-maria-da-penha/

Tramita no STF Ação Declaratória de Constitucionalidade que tem por objeto a Lei 11.340/06 (ADC n. 19). Ela foi proposta em 2007, pelo então Presidente da República, com o desiderato de lançar cal sobre as dúvidas que o tema ainda suscita, uma vez que se registram, no meio judiciário, casos em que a Norma deixou de ser aplicada (ver artigo Luiz Flávio Gomes: “Lei Maria da Penha: constitucionalidade ”, bem como o RSE 2007.023422-4, originário do TJMS, julgado em 16.04.08 ), por se entender que ela não guarda compatibilidade com a Carta Fundamental (consulte o andamento processual da ADC n. 19 ).

Não obstante a importância do tema, entende-se que ele não resiste a uma, ainda que superficial, análise de aplicabilidade da nossa Constituição ao caso, já que é nela mesma que pode ser encontrada justificativa para o especial tratamento previsto na Lei atacada. Seu art. 226, § 5.º, estabelece que “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.” E, mais adiante, no mesmo artigo, em seu § 8.º, consigna: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”

A agressão praticada no lar raramente atinge o marido e, quando isso acontece, é de diminuta consequência. Seus destinatários preferenciais são: mulher, filhos e idosos. Em relação a essas duas últimas categorias, há estatuto jurídico que estabelece uma série de proteções especiais (Leis 8.069/1990 e 10.741/2003, respectivamente). No concernente à mulher, tal conjunto normativo foi criado no ano de 2006, por meio da Lei Maria da Penha. Tal Corpo Legal único adota medidas que visam assistir e proteger mulheres em situação de violência doméstica e familiar (art. 1.º, Lei 11.340/06).

A preocupação constitucional com a brutalidade contra a mulher ocorrida dentro do lar se justifica, dado que (a) pesquisas internacionais e nacionais apontam que a família é, dentre todas as instituições, uma das mais violentas, ficando aquém, apenas, da Polícia ; (b) os agressores de mulheres são pessoas com quem elas mantêm ou mantiveram uma relação íntima de afeto (7 entre 10 mulheres vítimas de homicídio) ; (c) a violência ocorre, normalmente, no interior de suas próprias casas ; (d) ela encontra-se submetida a mecanismos legitimadores e propiciadores de sua perpetuação (papel social atribuído ao feminino, dependência econômica, sacralidade do matrimônio, dentre outros, o que conduz a tudo relevar pela “causa” da sua manutenção).

O argumento mais recorrente em prol da inconstitucionalidade – e que foi largamente utilizado como razão de decidir no acórdão citado no início do texto (TJMS) – refere-se ao fato de que a lei tratou, com exclusividade, da problemática da mulher, não amparando, portanto, o marido que venha a ser agredido pela esposa. Tal justificativa não é válida, tendo em vista que a própria Lei, quando aumentou a pena da violência doméstica (na modalidade de lesão corporal), fez de forma a abranger toda e qualquer agressão ocorrida no âmbito doméstico e familiar e não somente a perpetrada pelo homem contra a mulher. Assim, por exemplo, se a mãe agride o filho ou se a neta agride o avô, ambas terão a pena de lesão corporal aumentada. É o que preceitua o § 9.º, art. 129, CP, incluído pela Lei Maria da Penha: “Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.” Neste mesmo sentido, importa fazer menção ao art. 43 da mesma Lei, que incluiu no rol das agravantes genéricas (art. 61, CP) a situação de o agente ter praticado o crime: “f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica.” Não tem consistência, portanto, a alegada distinção de tratamento.

Em relação aos demais dispositivos legais encontrados na Lei Maria da Penha, de fato, dirigem-se somente à vítima do gênero feminino, o que, entretanto, não conduz à conclusão de colidirem com o texto constitucional, visto que não se pode olvidar o fato de os iguais deverem ser tratados igualmente e os desiguais, desigualmente. Eis o cerne da questão: a mulher, quando em situação de violência doméstica ou familiar, não se encontra em igualdade de condições com o homem agressor. Há uma vulnerabilidade, ainda que transitória, ou seja, enquanto dure o estado de agressão (física ou psicológica).

A condição muitas vezes ainda hipossuficiente da mulher no contexto familiar é “fruto da cultura patriarcal que facilita sua vitimização em situações de violência doméstica, tornando necessária a intervenção do Estado em seu favor, no sentido de proporcionar os meios e mecanismos para o reequilíbrio das relações de poder imanentes ao âmbito familiar. Reconhecer a condição hipossuficiente da mulher vítima de violência doméstica e/ou familiar não implica invalidar sua capacidade de reger a própria vida e administrar os próprios conflitos. Trata-se de garantir a intervenção estatal positiva, voltada à sua proteção e não à sua tutela”.

Ainda deve ser dito que as formas de reação às adversidades são distintas de conformidade com o gênero. Assim, se o homem reage a elas por meio da violência, “o mais comum é que as mulheres reajam às tensões e aos sofrimentos com sintomas de depressão mais que com explosões de agressividade” e, mesmo que a ação seja agressiva, ela dificilmente alcança o grau de letalidade característico da reação masculina. E mais importante, como destaca Maria Berenice Dias, “ainda que os homens também possam ser vítimas da violência doméstica, tais fatos não decorrem de razões de ordem social e cultural”. Por tal motivo, não se fazem “necessárias equalizações por meio de discriminações positivas, medidas compensatórias que visam remediar desvantagens históricas de um passado discriminatório”.

Por tudo isso, percebe-se que a violência praticada pelo parceiro íntimo não retrata um assunto privado, de interesse meramente familiar. Trata-se de um grave problema social e é dever do Estado, conforme preceitua a Constituição Federal, erradicá-lo. Para tanto, dentre outras medidas, foi editada a Lei Maria da Penha.

Em outras palavras, a Lei Maria da Penha preenche o comando constitucional que atribui ao Estado o dever de coibir a violência no contexto familiar, daí advindo sua plena e irrestrita constitucionalidade. Pode-se então dizer que o art. 226, § 8°, da CF/1988 é norma-suporte que legitima a intervenção do legislador ordinário no sentido de esforçar-se pela erradicação de toda e qualquer violência no âmbito das relações domésticas (em geral) e a que envolva a figura da mulher (em especial).

Ps.: A título de informação, com exceção de três (Pernambuco, Roraima e Alagoas), todos os demais Estados da Federação contêm, em sua Constituição, dispositivos voltados à coibição da violência no âmbito doméstico e familiar.

* o presente artigo, com alterações e atualizações elaboradas pela autora, é extrato de outro publicado na Revista RT, 2009, v. 886, p. 363-385, em coautoria com Valerio de Oliveira Mazzuoli, sob o título “Lei de violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei Maria da Penha): constitucionalidade e convencionalidade”.

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