sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Voto do Relator Min. Celso de Mello (caso abaixo):

EMENTA: PRISÃO CAUTELAR. DURAÇÃO IRRAZOÁVEL QUE SE PROLONGA, SEM CAUSA LEGÍTIMA, POR PERÍODO SUPERIOR A SEIS (06) ANOS E SEIS (06) MESES, NÃO OBSTANTE ANTERIOR DESCONSTITUIÇÃO DA CONDENAÇÃO PENAL IMPOSTA PELO JÚRI. SUBSISTÊNCIA, NO ENTANTO, DA PRISÃO CAUTELAR ANTERIORMENTE DECRETADA. CONFIGURAÇÃO, NA ESPÉCIE, DE OFENSA EVIDENTE AO “STATUS LIBERTATIS” DO PACIENTE. INADMISSIBILIDADE. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HIPÓTESE DE SUPERAÇÃO DA RESTRIÇÃO FUNDADA NA SÚMULA 691/STF. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA.

- A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém, ainda mais quando excede período superior a seis (06) anos e seis (06) meses de privação meramente processual da liberdade, ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor- -fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência.

- A utilização, pelo réu, do sistema recursal, por qualificar- -se como exercício regular de um direito, não pode ser invocada, contra o acusado, para justificar o prolongamento indevido de sua prisão cautelar, notadamente quando esse recurso penal vem a ser inteiramente acolhido pelo Tribunal local.


DECISÃO: Trata-se de “habeas corpus”, com pedido de medida cautelar, impetrado contra decisão emanada de eminente Ministro de Tribunal Superior da União, que, em sede de outra ação de “habeas corpus” ainda em curso no Superior Tribunal de Justiça (HC 167.001/SP), denegou medida liminar que lhe havia sido requerida em favor do ora paciente.

Presente tal contexto, impende verificar, desde logo, se a situação processual versada nestes autos justifica, ou não, o afastamento, sempre excepcional, da Súmula 691/STF.

Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal, ainda que em caráter extraordinário, tem admitido o afastamento, “hic et nunc”, da Súmula 691/STF, em hipóteses nas quais a decisão questionada divirja da jurisprudência predominante nesta Corte ou, então, veicule situações configuradoras de abuso de poder ou de manifesta ilegalidade (HC 85.185/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 86.634-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 86.864-MC/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – HC 87.468/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 89.025-MC-AgR/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA - HC 90.112-MC/PR, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 94.016/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 96.095/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 96.483/ES, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

Parece-me que a situação exposta nesta impetração ajusta-se às hipóteses que autorizam a superação do obstáculo representado pela Súmula 691/STF. Passo, em conseqüência, a examinar a postulação cautelar ora deduzida nesta sede processual.

O exame dos elementos trazidos aos autos, considerada a seqüência cronológica dos dados juridicamente relevantes, permite reconhecer a efetiva ocorrência, na espécie, de superação irrazoável dos prazos processuais, pois o ora paciente – consoante informação existente nestes autos – encontra-se preso desde 24/05/2004!!!

Em conseqüência de tal situação (que é abusiva e inaceitável), o ora paciente permanece, na prisão, por período superior àquele que a jurisprudência dos Tribunais tolera, dando ensejo, assim, à situação de injusto constrangimento a que alude o ordenamento positivo (CPP, art. 648, II).

É que o paciente - insista-se - está preso, cautelarmente, há mais de seis (06) anos e seis (06) meses, como o demonstra certidão de objeto e pé emitida pela Diretora da 1ª Vara Criminal da comarca de Sumaré/SP.

Vale registrar, no ponto, que o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, embora dando provimento integral à apelação interposta pelo ora paciente, invalidando-lhe, em conseqüência, a condenação penal imposta pelo Júri, deixou, no entanto, de determinar a soltura de referido paciente.

Isso significa, portanto, que o ora paciente, embora cautelarmente privado de sua liberdade há mais de seis (06) anos e seis (06) meses, ainda não foi submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri!

Excessiva, pois, a duração da prisão cautelar do paciente em referência...

É sempre importante relembrar, neste ponto, que ninguém, absolutamente ninguém, pode permanecer preso - especialmente quando sequer proferida sentença penal condenatória (RTJ 187/933-934, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 198/1113-1114, Rel. Min. GILMAR MENDES – RTJ 201/663, Rel. p/ o acórdão Min. CEZAR PELUSO – HC 87.721/PE, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA - HC 89.202/BA, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 99.672/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO, v.g.) - por lapso temporal que supere, de modo excessivo, os padrões de razoabilidade acolhidos pela jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria ora em exame:

“O EXCESSO DE PRAZO, MESMO TRATANDO-SE DE DELITO HEDIONDO (OU A ESTE EQUIPARADO), NÃO PODE SER TOLERADO, IMPONDO-SE, AO PODER JUDICIÁRIO, EM OBSÉQUIO AOS PRINCÍPIOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, O IMEDIATO RELAXAMENTO DA PRISÃO CAUTELAR DO INDICIADO OU DO RÉU.

- Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar (RTJ 137/287 – RTJ 157/633 – RTJ 180/262-264 – RTJ 187/933-934), considerada a excepcionalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, a prisão meramente processual do indiciado ou do réu, mesmo que se trate de crime hediondo ou de delito a este equiparado.

- O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário - não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu - traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei.

- A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo.
Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência.

- O indiciado ou o réu, quando configurado excesso irrazoável na duração de sua prisão cautelar, não podem permanecer expostos a tal situação de evidente abusividade, ainda que se cuide de pessoas acusadas da suposta prática de crime hediondo (Súmula 697/STF), sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal. Precedentes.”

(RTJ 195/212-213, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

O excesso de prazo, portanto, tratando-se, ou não, de crime hediondo, deve ser repelido pelo Poder Judiciário, pois é intolerável admitir que persista, no tempo, sem razão legítima, a duração da prisão cautelar do réu, em cujo benefício – é sempre importante relembrar - milita a presunção constitucional, ainda que “juris tantum”, de inocência.

Daí a razão de a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não admitir – porque absolutamente inaceitável - a subsistência de situações, como a que se registra nestes autos, que se mostram gravosas e ofensivas ao “status libertatis” de qualquer acusado (como sucede com o ora paciente, cautelarmente preso há mais de seis anos e seis meses (!!!), sem julgamento definitivo de seu processo), bastando referir, nesse sentido, inúmeras decisões emanadas desta Corte Suprema (RTJ 118/484, Rel. Min. CARLOS MADEIRA – RTJ 187/933-934, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RTJ 193/1050, Rel. Min. EROS GRAU – HC 79.789/AM, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – HC 83.867/PB, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 84.181/RJ, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 84.907/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.).

Cabe assinalar, finalmente, que o Supremo Tribunal Federal - revelando extrema sensibilidade a propósito de situações anômalas derivadas da superação abusiva e irrazoável do prazo de duração de prisões meramente cautelares - tem conhecido do pedido de “habeas corpus”, até mesmo quando não examinada essa específica questão pelo Tribunal de jurisdição inferior, como resulta claro das decisões a seguir mencionadas:

“RECURSO EM ‘HABEAS CORPUS’. LIBERDADE PROVISÓRIA. EXCESSO DE PRAZO. CONHECIMENTO DE OFÍCIO DA MATÉRIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. EXTENSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA.
O Tribunal tem admitido conhecer da questão do excesso de prazo quando esta se mostra gritante, mesmo que o tribunal recorrido não a tenha examinado.
.......................................................
Recurso provido em parte. ‘Habeas corpus’ concedido de ofício.”
(RHC 83.177/PI, Rel. Min. NELSON JOBIM - grifei)

“- ‘Habeas corpus’. Excesso de prazo para o encerramento da instrução criminal.
- ‘Habeas corpus’ de que não se conhece, por não ser caso de pedido originário a esta Corte, mas que se concede, ‘ex officio’, por gritante excesso de prazo.”
(HC 59.629/PA, Rel. Min. MOREIRA ALVES - grifei)

Sendo assim, em face das razões expostas e na linha de anterior decisão desta Suprema Corte (HC 100.574/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO), defiro o pedido de medida liminar, em ordem a determinar a imediata soltura do ora paciente, se por al não estiver preso, relativamente ao Processo nº 604.01.2004.014196-1, em tramitação perante o Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal da comarca de Sumaré/SP.

Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao MM. Juiz de Direito da 1ª Vara Criminal da comarca de Sumaré/SP (Processo nº 604.01.2004.014196-1), ao E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (HC nº 993.07.043794-4) e ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 167.001/SP).

2. Ouça-se a douta Procuradoria Geral da República.

Publique-se.

Brasília, 29 de novembro de 2010.



Ministro CELSO DE MELLO
Relator

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